sábado, 25 de fevereiro de 2012

QUARESMA - EIS O TEMPO DE CONVERSÃO

MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI PARA A QUARESMA 2012

“Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras” (Heb. 10,24)
Irmãos e irmãs!

A Quaresma oferece-nos a oportunidade de reflectir mais uma vez sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito, este é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e pela partilha, pelo silêncio e pelo jejum, com a esperança de viver a alegria pascal. 

Desejo, este ano, propor alguns pensamentos inspirados num breve texto bíblico tirado da Carta aos Hebreus: “Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras” (10,24). Esta frase aparece inserida numa passagem onde o escritor sagrado exorta a ter confiança em Jesus Cristo como Sumo Sacerdote que nos obteve o perdão e o acesso a Deus. O fruto do acolhimento de Cristo é uma vida edificada segundo as três virtudes teologais: trata-se de nos aproximarmos do Senhor “com um coração sincero, com a plena segurança da fé” (v. 22), de conservarmos firmemente “a profissão da nossa esperança” (v. 23), numa solicitude constante por praticar, juntamente com os irmãos, “o amor e as boas obras” (v. 24). Na passagem em questão, afirma-se também que é importante, para apoiar esta conduta evangélica, participar nos encontros litúrgicos e na oração da comunidade, com os olhos fixos na meta escatológica: a plena comunhão em Deus (v. 25). Detenho-me no versículo 24 que, em poucas palavras, oferece um ensinamento precioso e sempre actual sobre três aspectos da vida cristã: prestar atenção ao outro, reciprocidade e santidade pessoal.

1. “Prestemos atenção”: responsabilidade pelo irmão.
O primeiro elemento é o convite a “prestar atenção”: o verbo grego usado é katanoein, que significa observar bem, estar atento, olhar conscienciosamente, dar-se conta de uma realidade. Encontramo-lo no Evangelho, quando Jesus convida os discípulos a “observar” as aves do céu, que não se preocupam com o alimento e todavia são objecto de solícita e cuidadosa Providência divina (cf. Lc 12,24), e a “dar-se conta” da trave que têm na própria vista, antes de reparar no argueiro que está na vista do irmão (cf. Lc 6,41). Encontramos o referido verbo também noutro trecho da mesma Carta aos Hebreus, quando convida a “considerar Jesus” (3,1) como o Apóstolo e o Sumo Sacerdote da nossa fé. Por conseguinte, o verbo que aparece na abertura da nossa exortação convida a fixarmos o olhar no outro, a começar por Jesus, e a estarmos atentos uns aos outros, a não nos mostrarmos alheios e indiferentes ao destino dos irmãos. Mas, com frequência, prevalece a atitude contrária: a indiferença, o desinteresse, que nascem do egoísmo, mascarado por uma aparência de respeito pela “esfera privada”. Também hoje ressoa, com vigor, a voz do Senhor que chama cada um de nós a cuidar do outro. Também hoje Deus nos pede para sermos o “guarda” dos nossos irmãos (cf. Gn 4,9), para estabelecermos relações caracterizadas por recíproca solicitude, pela atenção ao bem do outro e a todo o seu bem. O grande mandamento do amor ao próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por quem, como eu, é criatura e filho de Deus: o facto de sermos irmãos em humanidade e, em muitos casos, também na fé, deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro alter-ego, infinitamente amado pelo Senhor. Se cultivarmos este olhar de fraternidade, brotarão naturalmente do nosso coração a solidariedade, a justiça, bem como a misericórdia e a compaixão. O Servo de Deus Paulo VI afirmava que o mundo actual sofre sobretudo de falta de fraternidade: “O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na esterilização ou no monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo” (Carta Enc. Populorum Progressio, 66).

A atenção ao outro inclui que se deseje, para ele ou para ela, o bem sob todos os seus aspectos: físico, moral e espiritual. Parece que a cultura contemporânea perdeu o sentido do bem e do mal, sendo necessário reafirmar com vigor que o bem existe e vence, porque Deus é “bom e faz o bem” (Sal 118/119, 68). O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica do bem; interessar-se pelo irmão quer dizer abrir os olhos às suas necessidades. A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma espécie de “anestesia espiritual” que nos torna cegos aos sofrimentos alheios. O Evangelista Lucas narra duas parábolas de Jesus, nas quais são indicados dois exemplos desta situação que se pode criar no coração do homem. Na parábola do bom Samaritano, o sacerdote e o levita, com indiferença, “passam ao largo” do homem assaltado e espancado pelos salteadores (cf. Lc 10,30-32), e, na do rico avarento, um homem saciado de bens não se dá conta da condição do pobre Lázaro que morre de fome à sua porta (cf. Lc 16, 19). Em ambos os casos, deparamo-nos com o contrário de “prestar atenção”, de olhar com amor e compaixão. O que é que impede este olhar feito de humanidade e de carinho pelo irmão? Com frequência, é a riqueza material e a saciedade, mas pode ser também o antepor a tudo os nossos interesses e preocupações próprias. Devemos sempre ser capazes de “ter misericórdia” por quem sofre; o nosso coração nunca deve estar tão absorvido pelas nossas coisas e problemas que fique surdo ao brado do pobre. Pelo contrário, a humildade de coração e a experiência pessoal do sofrimento podem, precisamente, revelar-se fonte de um despertar interior para a compaixão e a empatia: “O justo conhece a causa dos pobres, porém o ímpio não o compreende” (Prov 29,7). Deste modo entende-se a bem-aventurança “dos que choram” (Mt, 5,4), isto é, de quantos são capazes de sair de si mesmos porque se comoveram com o sofrimento alheio. O encontro com o outro e a abertura do coração às suas necessidades são ocasião de salvação e de bem-aventurança.

O facto de “prestar atenção” ao irmão inclui, igualmente, a solicitude pelo seu bem espiritual. E aqui, desejo recordar um aspecto da vida cristã que me parece esquecido: a correcção fraterna, tendo em vista a salvação eterna. De forma geral, hoje é-se muito sensível ao tema do cuidado e do amor que visa o bem físico e material dos outros, mas quase não se fala da responsabilidade espiritual pelos irmãos. Na Igreja dos primeiros tempos não era assim, como não o é nas comunidades verdadeiramente maduras na fé, nas quais se tem a peito não só a saúde corporal do irmão, mas também a da sua alma, tendo em vista o seu destino derradeiro. Lemos na Sagrada Escritura: “Repreende o sábio e ele te amará. Dá conselhos ao sábio e ele tornar-se-á ainda mais sábio, ensina o justo e ele aumentará o seu saber” (Prov 9, 8-9). O próprio Cristo manda repreender o irmão que cometeu um pecado (cf. Mt 18,15). O verbo usado para exprimir a correcção fraterna – elenchein – é o mesmo que indica a missão profética, própria dos cristãos, de denunciar uma geração que se faz condescendente com o mal (cf. Ef, 11). A tradição da Igreja enumera entre as obras espirituais de misericórdia a de “corrigir os que erram”. É importante recuperar esta dimensão do amor cristão. Não devemos ficar calados diante do mal. Penso aqui na atitude daqueles cristãos que preferem, por respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade comum em vez de alertar os próprios irmãos contra modos de pensar e agir que contradizem a verdade e não seguem o caminho do bem. Entretanto, a advertência cristã nunca há-de ser animada por espírito de condenação ou de censura; é sempre movida pelo amor e pela misericórdia, e brota duma verdadeira solicitude pelo bem do irmão. Diz o apóstolo Paulo: “Se porventura um homem for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão, e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado” (Gal 6, 1). Neste nosso mundo impregnado de individualismo, é necessário redescobrir a importância da correcção fraterna, para caminharmos juntos em direcção à santidade. É que “sete vezes cai o justo” (Prov 24, 16) – diz a Escritura –, e todos nós somos frágeis e imperfeitos (cf. 1Jo 1, 8). Por isso, é um grande serviço ajudar, e deixar-se ajudar, a ler com verdade dentro de si mesmo, para melhorar a própria vida e seguir mais rectamente o caminho do Senhor. Há sempre necessidade de um olhar que ama e corrige, que conhece e reconhece, que discerne e perdoa (cf. Lc 22,61), como fez, e faz, Deus com cada um de nós.

2. “Uns aos outros”: o dom da reciprocidade.
O facto de sermos o “guarda” dos outros contrasta com uma mentalidade que, reduzindo a vida unicamente à dimensão terrena, deixa de a considerar na sua perspectiva escatológica, e aceita qualquer opção moral em nome da liberdade individual. Uma sociedade como a actual pode tornar-se surda quer aos sofrimentos físicos, quer às exigências espirituais e morais da vida. Não deve ser assim na comunidade cristã! O apóstolo Paulo convida a procurar o que “leva à paz e à edificação mútua” (Rm 14, 19), favorecendo “o próximo no bem, em ordem à construção da comunidade” (Rm 15, 2), sem buscar “o próprio interesse, mas o do maior número, a fim de que eles sejam salvos” (1Cor 10,33). Esta recíproca correcção e exortação em espírito de humildade e de amor, deve fazer parte da vida da comunidade cristã.

Os discípulos do Senhor, unidos a Cristo através da Eucaristia, vivem numa comunhão que os liga uns aos outros como membros de um só corpo. Isto significa que o outro me pertence: a sua vida, a sua salvação têm a ver com a minha vida e a minha salvação. Tocamos aqui um elemento muito profundo da comunhão: a nossa existência está ligada à dos outros, quer no bem quer no mal; tanto o pecado como as obras de amor possuem também uma dimensão social. Na Igreja, corpo místico de Cristo, verifica-se esta reciprocidade: a comunidade não cessa de fazer penitência e implorar perdão para os pecados dos seus filhos, mas alegra-se contínua e jubilosamente também com os testemunhos de virtude e de amor que nela se manifestam. Que “os membros tenham a mesma solicitude uns para com os outros” (1Cor 12, 25) – afirma São Paulo – porque somos um e o mesmo corpo. O amor pelos irmãos, do qual é expressão a esmola – típica prática quaresmal, juntamente com a oração e o jejum – radica-se nesta pertença comum. Também com a preocupação concreta pelos mais pobres, pode cada cristão expressar a sua participação no único corpo que é a Igreja. E saber reconhecer o bem que o Senhor faz nos outros e agradecer com eles os prodígios da graça que Deus, bom e omnipotente, continua a realizar nos seus filhos, é também atenção aos outros na reciprocidade. Quando um cristão vislumbra no outro a acção do Espírito Santo, não pode deixar de se alegrar e dar glória ao Pai celeste (cf. Mt 5,16).

3. “Para nos estimularmos ao amor e às boas obras”: caminhar juntos na santidade.
Esta afirmação da Carta aos Hebreus (10, 24) impele-nos a considerar a vocação universal à santidade como o caminho constante na vida espiritual, a aspirar aos carismas mais elevados e a um amor cada vez mais alto e fecundo (cf. 1Cor 12,31-13,13). A atenção recíproca tem como finalidade estimular-se, mutuamente, a um amor efectivo sempre maior, “como a luz da aurora, que cresce até ao romper do dia” (Prov 4, 18), à espera de viver o dia sem ocaso em Deus. O tempo que nos é concedido na nossa vida é precioso para descobrir e realizar as boas obras, no amor de Deus. Assim, a própria Igreja cresce e desenvolve-se para chegar à plena maturidade de Cristo (cf. Ef 4, 13). É nesta perspectiva dinâmica de crescimento que se situa a nossa exortação a estimular-nos reciprocamente para chegarmos à plenitude do amor e das boas obras.

Infelizmente, está sempre presente a tentação da tibieza, de sufocar o Espírito, da recusa de “pôr a render os talentos” que nos foram dados para bem nosso e dos outros (cf. Mt 25, 24-28). Todos recebemos riquezas espirituais ou materiais úteis para a realização do plano divino, para o bem da Igreja e para a nossa salvação pessoal (cf. Lc 12, 21; 1Tm 6, 18). Os mestres espirituais lembram que, na vida de fé, quem não avança, recua. Queridos irmãos e irmãs, acolhamos o convite, sempre actual, para tendermos à “medida alta da vida cristã” (João Paulo II, Carta Ap. Novo Millennio Ineunte, 31). A Igreja, na sua sabedoria, ao reconhecer e proclamar a bem-aventurança e a santidade de alguns cristãos exemplares, tem como finalidade suscitar o desejo de imitar as suas virtudes. São Paulo exorta: “Adiantai-vos uns aos outros na mútua estima” (Rm 12,10).

Que todos, à vista de um mundo que exige dos cristãos um renovado testemunho de amor e fidelidade ao Senhor, sintam a urgência de se esforçar por crescer no amor, no serviço e nas boas obras (cf. Heb 6, 10). Este apelo ressoa particularmente forte neste tempo santo de preparação para a Páscoa. Com votos de uma Quaresma santa e fecunda, confio-vos à intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria e, de coração, concedo a todos a Bênção Apostólica.

Vaticano, 3 de Novembro de 2011

Benedictus PP. XVI

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